Por Fernando Zito*
Viver em condomínio é um exercício diário de convivência, e um dos temas mais comuns que surgem é o barulho. É natural que todos busquem sossego em seus lares. No entanto, o que acontece quando o barulho vem de uma criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA), e esse ruído não é intencional, mas uma manifestação de sua condição? Essa é uma situação delicada que exige um olhar atento e empático, equilibrando o direito ao sossego com os direitos fundamentais de inclusão.
Para entender essa complexidade, precisamos primeiro olhar o que a lei nos diz. O Código Civil, em seu artigo 1.277, é claro ao assegurar o direito dos vizinhos à segurança, à saúde e, sim, ao sossego. Ele permite que qualquer proprietário ou morador peça medidas para acabar com interferências que prejudiquem essa tranquilidade.
“O proprietário ou possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.”
Além disso, é comum que os próprios condomínios, através de suas Convenções e Regulamentos Internos, estabeleçam horários de silêncio e limites para o barulho. No entanto, é crucial que essas regras internas sejam aplicadas com bom senso e em harmonia com princípios mais amplos de convivência e, mais importante, com os direitos de todas as pessoas que vivem ali.
É nesse ponto que entra a legislação de proteção à pessoa com deficiência. O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) é um marco importantíssimo. Ele reconhece que pessoas com deficiência, incluindo as crianças com TEA, têm direito à dignidade, à inclusão, à acessibilidade e, acima de tudo, à não discriminação. O artigo 4º desse estatuto diz com todas as letras: “Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.” Isso significa que as regras do condomínio não podem ser aplicadas de um jeito que crie uma discriminação direta ou indireta contra alguém por sua condição. No caso específico de uma criança com TEA, um comportamento que gera ruído e que é resultado de sua condição de saúde não pode ser tratado como se fosse um descumprimento voluntário das regras. A Lei nº 12.764/2012, que criou a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, reforça ainda mais a importância de promover a inclusão social e de remover qualquer barreira que impeça o pleno convívio dessas pessoas na sociedade.
O Poder Judiciário, tem demonstrado um entendimento muito sensato sobre esses conflitos. Quando há reclamações de barulho envolvendo crianças autistas, a Justiça avalia a situação com muita cautela. Em diversos casos julgados, prevalece a ideia de que o barulho deve ser analisado dentro de seu contexto, especialmente quando está ligado a necessidades específicas da criança.
Um exemplo disso, que nos ajuda a entender como a justiça pensa, veio de um julgamento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF). Neste caso, um condomínio aplicou uma multa a uma moradora porque seu filho, portador de TEA, foi flagrado infringindo uma regra do regimento interno, que proibia o consumo de alimentos no salão de jogos. A multa foi aplicada sem uma advertência prévia. A decisão judicial, mantendo o entendimento de primeira instância, flexibilizou a regra interna do condomínio. Ela destacou que as normas internas devem ser interpretadas e aplicadas levando em conta o “princípio da razoabilidade”, especialmente para atender às necessidades de pessoas em situação de vulnerabilidade, como é o caso de portadores de TEA. A Justiça considerou que a falta de uma notificação prévia tornava a multa inexigível e enfatizou que uma comunicação antecipada é razoável e prestigia o “princípio da dignidade da pessoa humana”, além de contribuir para a inclusão e proteção dos direitos das pessoas com deficiência. Essa jurisprudência mostra claramente que o Judiciário não vê esses casos como uma simples infração de regras, mas como situações que demandam sensibilidade e adaptação.
“JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. RECURSO INOMINADO. CONDOMÍNIO. MULTA SEM PRÉVIA ADVERTÊNCIA. INFRAÇÃO PRATICADA POR FILHO DE CONDÔMINO. CONDIÇÃO ESPECIAL. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. NECESSIDADE DE PRÉVIA COMUNICAÇÃO. INEXIGIBILIDADE DA MULTA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. 1. Trata-se de recurso interposto pelo réu em face da sentença que declarou a inexigibilidade da multa nº 612/2023 e o condenou a restituir à autora a quantia de R$ 397,69 (trezentos e noventa e sete reais e sessenta e nove centavos). O recorrente alega que a multa foi aplicada em conformidade com o regimento interno do condomínio e que foi oportunizado à autora questionar administrativamente a multa aplicada. 2. Recurso próprio e tempestivo (ID 62945666). Preparo regular (ID 62945667 a ID 62945670). Contrarrazões apresentadas (ID 62945707). 3. A questão devolvida a esta Turma Recursal diz respeito tão somente à inexigibilidade da multa 612/2013 aplicada à condômina, ora recorrida. 4. O regimento interno do condomínio é documento que estabelece as normas de convivência entre os moradores, os direitos e deveres dos condôminos e as regras para uso das áreas comuns, além de aplicar penalidades em caso de infrações às suas regras. No caso, resta incontroverso nos autos que o artigo 129 do regimento interno do condomínio proíbe o consumo de fumo, bebidas, alimentos e similares dentro do salão de jogos e que o filho da recorrida, à época com 19 anos, foi flagrado infringindo essa regra (alimentos). A multa foi aplicada sem notificação prévia, conforme previsto no regimento interno. 5. Por outro lado, é fato que o filho da autora é portador do Transtorno do Espectro Autista (ID 62945007). Assim, muito embora o recorrente afirme que o regimento interno do condomínio foi integralmente cumprido e que a multa deve ser mantida, deve-se prestigiar a decisão do Juízo a quo que flexibilizou a regra interna diante da situação especial do filho da autora. Com efeito, as normas internas do condomínio devem ser interpretadas e aplicadas à luz do princípio da razoabilidade com fim de atender às necessidades específicas de pessoas em situação de vulnerabilidade, como no caso de portadores de Transtorno do Espectro Autista (TEA). 6. Dessa maneira, a prévia comunicação do fato se monstra razoável na situação posta, mormente considerando que a infração diz respeito ao consumo de alimento em salão de festa. Tal alternativa prestigia o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal), bem como contribui para inclusão e proteção dos direitos das pessoas com deficiências (Lei nº 13.146/2015). 7. Assim, ante a ausência de notificação prévia, necessária a manutenção da sentença que declarou a inexigibilidade da multa nº 612/2023. 8. Deixa-se de analisar as alegações feitas em contrarrazões no tocante à inexigibilidade da multa nº 890/213 e da existência de dano moral, uma vez que a autora não manejou o recurso no momento oportuno, ocorrendo o trânsito em julgado material no tocante a tais pedidos. 9. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. Sentença mantida. Custas recolhidas. Condenado o recorrente vencido ao pagamento de honorários advocatícios fixados em 20% sobre o valor da condenação. 10. Ante a nomeação de advogada dativa, pelo juízo de origem, para fins de apresentação de contrarrazões ao recurso inominado, necessária se faz a fixação dos honorários advocatícios. Nesse sentido, o artigo 22 do Decreto Distrital nº 43 .821/2022 versa que a fixação de honorários deve ser realizada pelo juiz competente para cada ato, devendo ser observados os parâmetros ali descritos para a fixação do quantum, quais sejam: “I – a complexidade da matéria; II – o grau de zelo e de especialização do profissional; III – o lugar e tempo exigidos para a prestação do serviço; IV – as peculiaridades do caso”. No presente caso, ante a ausência de complexidade da causa e tendo em vista os valores máximos constantes na tabela anexa do referido Decreto, fixam-se os honorários, devidos pelo Distrito Federal/Sejus (artigo 19 da Lei nº 7.157/2022, artigos 24 e 25 do Decreto nº 43.821/2022 e Cláusula Quinta, II do Acordo de Cooperação nº 010/2022) à advogada dativa da parte autora no valor de R$ 400,00 (quatrocentos reais). A emissão da certidão relativa aos honorários (artigo 23 do Decreto nº 43.821/2022) deverá ser feita pela instância de origem após o trânsito em julgado e respectiva baixa dos autos. 11. A súmula de julgamento servirá de acórdão, consoante disposto no artigo 46 da Lei 9 .099/95.”
(TJ-DF 07226102520238070007 1934626, Relator.: GISELLE ROCHA RAPOSO, Data de Julgamento: 23/10/2024, Segunda Turma Recursal, Data de Publicação: 28/10/2024)
Diante desse cenário, a situação em um condomínio com uma criança com TEA que gera ruídos involuntários precisa ser abordada com um olhar de entendimento. É fundamental reconhecer que o barulho em questão não é voluntário ou intencional, mas uma consequência de uma condição que é legalmente reconhecida. Aplicar sanções, como multas ou advertências, sem antes analisar o impacto da condição da criança, pode facilmente ser configurado como um ato discriminatório, violando as leis de proteção à pessoa com deficiência. O papel do condomínio é garantir que todos os moradores vivam em harmonia, o que inclui promover a inclusão e evitar medidas que possam ferir a dignidade da criança ou de sua família. Em alguns casos, pode ser útil até mesmo um parecer técnico de um especialista para avaliar se o nível de ruído está dentro de limites aceitáveis, especialmente se a situação se tornar uma controvérsia legal.
Com base nesse entendimento, como podemos conciliar o direito ao sossego dos moradores com a inclusão e a dignidade de uma criança autista? Há um conjunto de recomendações muito práticas e importantes que o síndico e o conselho devem levar em consideração para promover uma convivência mais empática:
Primeiro, a sensibilização dos condôminos é um passo crucial. Muitos moradores podem não compreender o Transtorno do Espectro Autista e como ele afeta o comportamento. Informar a comunidade sobre o TEA, através de comunicados simples e claros ou até em reuniões, enfatizando a importância da empatia e do respeito à criança, pode transformar a percepção e reduzir os atritos.
Em segundo lugar, a equipe de portaria e os funcionários do condomínio devem ser treinados. Eles são, muitas vezes, o primeiro contato quando há uma reclamação de barulho. Ensiná-los a agir com discrição e sensibilidade, com base em orientações prévias da administração, é essencial para lidar com essas situações delicadas de forma adequada.
A intervenção conciliatória com mediação é outra ferramenta poderosa. Buscar o diálogo entre as partes envolvidas, incentivando a cooperação e promovendo o entendimento mútuo, pode resolver grande parte dos conflitos sem a necessidade de medidas mais drásticas. É sobre sentar e conversar, buscando um meio-termo que beneficie a todos.
Há também a possibilidade de adaptações físicas ou comportamentais. Isso pode incluir, por exemplo, propor medidas técnicas como o isolamento acústico da unidade da criança, se isso for viável. Ou, ainda, oferecer apoio à família da criança para que busquem estratégias que ajudem a minimizar os ruídos, como o auxílio de um profissional ou orientações sobre como reduzir o impacto no ambiente.
E, por fim, é importante registrar as ocorrências e buscar soluções documentadas. Quando necessário, envolver especialistas ou até mesmo órgãos públicos que trabalham com questões de inclusão pode trazer novas perspectivas e evitar que a situação se arraste para a esfera judicial desnecessariamente.
E quanto às sanções, como as multas? Elas devem ser consideradas o último recurso, e sua aplicação exige extrema cautela. Penalidades só devem ocorrer se: 1) Ficar comprovado que há ruídos excessivos que ultrapassam o que é razoavelmente aceitável; 2) For provado que esses ruídos não são decorrentes da condição especial da criança; e 3) Ficar evidente que há abuso de conduta ou descaso por parte dos responsáveis. Nesses casos, o uso de multas ainda requer uma análise jurídica muito cuidadosa para evitar qualquer alegação de discriminação ou de atitude abusiva por parte do condomínio.
Em resumo, o caminho para o condomínio é adotar uma postura de equilíbrio e inclusão. O objetivo principal deve ser sempre o respeito mútuo, conciliando o direito de todos ao sossego com o direito inalienável da criança com TEA à dignidade, à inclusão e ao pleno desenvolvimento. Seja através da mediação, da sensibilização da comunidade ou de soluções adaptativas, o importante é evitar penalidades automáticas que possam ferir os direitos dessa criança ou prejudicar o convívio coletivo. Somente em situações muito claras de abuso, que não estejam relacionadas à condição especial da criança, é que medidas sancionatórias podem ser consideradas, sempre pautadas pela razoabilidade, proporcionalidade e pelo devido processo legal. A boa convivência em condomínios passa necessariamente pela compreensão e pela empatia, especialmente quando se trata de proteger e incluir as pessoas mais vulneráveis.
*Advogado militante na área de Direito Civil; Especialista em Direito Condominial; Pós-graduado em Direito e Negócios Imobiliários pela Damásio Educacional; Pós-Graduado em Direito Tributário pela PUC/SP; Pós-Graduado em Processo Civil pela PUC/SP; Membro da Comissão de Condomínios do Ibradim, Palestrante especializado no tema Direito Condominial; Colunista dos sites especializados Sindiconet, Sindiconews, Expresso Condomínio, Condomínio em Foco, e das revistas “Em Condomínios” e” Viva o Condomínio”;