Há cerca de dez anos, o STJ enfrentou a controvérsia sobre quem teria legitimidade – proprietário ou adquirente – para responder por dívidas condominiais na hipótese de alienação da unidade, notadamente quando se tratar de compromisso de compra e venda não levado a registro. O tema é socialmente sensível, já que, no Brasil, grande parte das transações imobiliárias ocorre à margem do registro imobiliário. Não à toa, o instrumento de compromisso de compra e venda foi objeto de intensos estudos doutrinários – destaque para José Osório de Azevedo Jr.1 – que ressaltaram sua natureza jurídica e efeitos, afastando a ideia de ser um simples contrato preliminar, dada sua relevância prática na dinâmica imobiliária nacional.
Com o julgamento do Tema 8862, o STJ buscou pacificar a questão e fixou duas premissas centrais: a posse e o conhecimento do condomínio. O Tribunal afastou a questão registraria da centralidade da questão (“O que define a responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais não é o registro do compromisso de venda e compra…”) e deslocou o foco para a fruição da coisa ao reconhecer que a responsabilidade decorre da “relação jurídica material com o imóvel, representada pela imissão na posse pelo promissário comprador e pela ciência inequívoca do condomínio acerca da transação”.
Assim, sem negar a responsabilidade originária do proprietário/vendedor, o STJ deixou claro que ela pode ser superada por dois elementos concretos e verificáveis: (i) a imissão do promissário comprador na posse e; (ii) a ciência inequívoca da transação pelo condomínio/credor.
As despesas condominiais têm origem no rateio destinado à fruição e conservação das áreas comuns que integram o condomínio edilício. Por sua própria natureza, constituem encargos de uso e manutenção do empreendimento como um todo, beneficiando diretamente o possuidor do imóvel. Tanto é que, nos termos do art. 1.334 do CC e do art. 12 da lei 4.591/19643, se enquadra na categoria de “condômino”, o proprietário, o promitente comprador e o cessionário de direito à aquisição, não havendo clara distinção quanto à obrigação de cada um deles no que tange às despesas condominiais. Assim, o responsável pelas despesas condominiais é sempre o condômino, que pode ou não ser o proprietário do imóvel.
Esse raciocínio encontra paralelo na disciplina da alienação fiduciária, em que a lei 9.514/1997 é expressa ao atribuir ao devedor fiduciante, enquanto detentor da posse direta do imóvel, a obrigação pelo pagamento das dívidas e despesas condominiais.
A questão estaria, em tese, solucionada se não fosse outro aspecto relevante, aparentemente conflitante com a solução dada: a natureza propter rem das despesas condominiais.
As obrigações propter rem4 decorrem de um vínculo de direito real entre o sujeito e o imóvel, de modo que, uma vez constituído esse vínculo, a obrigação se transmite automaticamente ao seu titular. Trata-se de uma obrigação que adere ao bem e o acompanha, de titular a titular, independentemente de quem tenha dado causa ao inadimplemento.
Assim, é inegável que a titularidade do imóvel confere ao promitente vendedor determinados direitos e obrigações patrimoniais, ainda que esvaziados, os quais podem ser eventualmente afetados pela execução condominial. Foi justamente esse o ponto enfrentado pelo saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino ao analisar o Tema 886, no REsp 1.442.840/PR (DJe de 21/8/15). Na ocasião, discutia-se a possibilidade de penhora do imóvel, mesmo que isso implicasse direitos patrimoniais de terceiro – o promitente vendedor – que não figurava como parte na execução.
Isto porque, ao se aplicar literalmente o Tema 886 haveria uma aparente dificuldade: não sendo o promitente vendedor parte na execução, a princípio não seria possível levar o imóvel à penhora, mas apenas os direitos aquisitivos do comprador. Com isso, a execução seria, se não totalmente frustrada, ao menos sensivelmente limitada – resultado que revela evidente contradição com a natureza jurídica das obrigações propter rem.
Ao entender por tal dificuldade, o ministro Sanseverino recorreu à teoria da dualidade obrigacional, desenvolvida na Alemanha, segundo a qual há uma cisão da obrigação em “débito” (Schuld) – entendido como o dever de prestar – e “responsabilidade” (Haftung) – a sujeição patrimonial do indivíduo à satisfação da dívida. Ao aplicar a teoria às despesas condominiais, o Ministro Sanseverino concluiu que o débito deve ser atribuído àquele que efetivamente se beneficia dos serviços prestados pelo condomínio, isto é, o possuidor direto (promitente comprador).
No entanto, concluiu o ministro que o promitente vendedor não se desvincula da obrigação, mantendo-se na condição de responsável pelo pagamento da dívida, enquanto mantiver a situação jurídica de proprietário do imóvel, respondendo, inclusive, com todo o seu patrimônio, visto que, segundo ele, a obrigação propter rem não se confundiria com os direitos reais de garantia.
Diante da evidente controvérsia causada pelo acordão citado e o Tema 886, que têm gerado decisões divergentes no próprio STJ, recentemente a ministra Isabel Galloti propôs a revisão do Tema 8865, com o objetivo de promover a pacificação da matéria.
Nesse contexto, e apesar da controvérsia existente, nos parece que tanto o Tema 886 quanto a teoria da dualidade das obrigações, aliada à natureza propter rem das despesas condominiais, possibilitam uma interpretação integrada e coerente capaz de solucionar adequadamente a questão.
É no cotejo desses princípios que reside a adequada atribuição das responsabilidades, através da qual é possível assegurar a eficácia da execução condominial, a correta atribuição do dever de prestar a obrigação e a responsabilidade de todos os sujeitos de direito.
Dessa forma, cabe ressaltar dois pontos principais: (i) o “débito” (Schuld) – a identificação do sujeito passivo da obrigação condominial decorre da relação jurídica material estabelecida com o imóvel, representada pela imissão na posse com animus dominus. Esse indivíduo é quem assume a obrigação pessoal de quitar a dívida, por ser o efetivo beneficiário dos serviços e despesas relacionados à fruição e conservação do condomínio e; (ii) a responsabilidade (Haftung) – que consiste na sujeição patrimonial de terceiros à satisfação da dívida. Em virtude do caráter propter rem das despesas condominiais, essa responsabilidade se estende a todos aqueles que detenham direitos reais subjetivos sobre o bem, ainda que de maneira diversa quanto à extensão e aos efeitos.
Independentemente de o instrumento jurídico de transferência estar ou não registrado, a obrigação do proprietário tabular não desaparece. Nessa circunstância, o proprietário registral exerce função análoga à de um terceiro garantidor com ônus real: responde pela dívida condominial apenas até o limite do patrimônio a ela vinculado, e não com a integralidade de seus bens.
É fato que o caráter propter rem não elimina a figura do sujeito passivo incumbido do dever de prestar; ao contrário, ele amplia a eficácia da obrigação ao atingir a esfera jurídica de qualquer pessoa que detenha vínculo real sobre o imóvel. Com isso, a intenção do legislador foi assegurar que não haja barreiras à sujeição patrimonial do bem ao cumprimento da obrigação condominial.
Conforme destacado pela ministra Isabel Galloti, embora o proprietário não tenha se beneficiado dos serviços prestados pelo condomínio, ele garante o pagamento da dívida com o próprio imóvel, justamente por ser titular do direito real sobre o bem.
A única distinção feita pelo Tema 886 no tocante ao registro, e que encontra justificativa, reside em sua função de publicidade. O registro do compromisso de compra e venda, bem como de eventuais cessões, confere a terceiros a publicidade necessária para delimitar a responsabilidade dos diferentes envolvidos em relação ao imóvel.
Contudo, observa-se que, na prática brasileira, a maior parte desses instrumentos não é registrada, predominando, assim, a informalidade. Na ausência do registro, o conhecimento do condomínio sobre a existência de negócio jurídico e a imissão na posse do adquirente não se presume e depende de prova, como pontuou o STJ. Entretanto, no contexto da vida condominial, marcada pelo controle de acesso às áreas comuns, é bastante improvável que alguém assuma a posse de uma unidade edilícia sem que o corpo diretivo do condomínio tenha prévia ciência da situação.
Assim como a informalidade predomina em relação ao registro, é igualmente comum que o condomínio tenha pleno conhecimento sobre quem ocupa cada unidade. Isso se comprova pela prática diária de emissão de boletos diretamente em nome dos ocupantes, e não dos proprietários tabulares. Ao reconhecer esta dinâmica e atribuir eficácia jurídica a situações recorrentes da vida condominial, o STJ buscou harmonizar as relações sociais e assegurar efetividade às cobranças condominiais.
Isto porque, com a transferência da posse, é inegável que o promitente vendedor conserva para si uma propriedade formal, desprovida de poderes substanciais sobre o imóvel.6 Ao passo que o promissário comprador, ao contrário, passa a exercer plenamente os poderes de usar e gozar do bem e, em certa medida, até mesmo dele dispor, ainda que de forma limitada.
Na prática, o domínio é reservado pelo promitente vendedor como uma espécie de garantia pelo pagamento do saldo devedor (quando há) ou em decorrência da inação do adquirente no registro da transferência, muitas vezes motivada pelos custos tributários envolvidos. Ademais, uma vez quitado o compromisso, não subsiste em favor do proprietário qualquer direito material sobre o imóvel, mas apenas a obrigação de outorgar a escritura definitiva.
Portanto, de forma objetiva, o sujeito com legitimidade para figurar no polo passivo de execução condominial é aquele que, ao tempo do ajuizamento da ação detém a posse do imóvel com intenção de proprietário (animus dominus). Nesses casos, o promitente vendedor não seria sequer parte da execução condominial, devendo, no entanto, ser obrigatoriamente intimado em caso de penhora sobre o imóvel, conforme estabelece o art. 799, IV do CPC, sob pena de ineficácia (art. 804, § 3º), bem como seja intimado previamente sobre a realização do leilão (art. 889, VII)7.
Ao ser devidamente cientificado e intimado acerca da execução, o promitente vendedor poderá optar por quitar o débito condominial, sub-rogando-se no crédito, ou acompanhar a eventual submissão do imóvel à execução para satisfação da dívida, adotando as medidas judiciais necessárias para o recebimento de eventual excedente, caso haja.
É isso que, de fato, deveria ocorrer. Após serem esgotadas todas as possibilidades de satisfação do débito por meio do patrimônio pessoal do promissário comprador devedor, respeitando-se a ordem de preferência prevista no art. 835 do CPC, caberá, então, a penhora do próprio imóvel.
Neste aspecto, o próprio STJ já firmou entendimento de que, nas dívidas condominiais, o próprio imóvel que gerou as despesas serve como garantia do pagamento da dívida, sendo possível a penhora do bem independentemente de quem figure como sujeito passivo da obrigação, possibilitando inclusive a constrição do imóvel mesmo que o proprietário não tenha participado da fase de conhecimento do processo.8
Como nota relevante, vale destacar que o projeto de reforma do CC atualmente em tramitação no Congresso Nacional (PL 4 de 2025) incorporou integralmente a diretriz estabelecida pelo Tema 8869. Todavia, parece ter deixado de esclarecer o papel do promitente vendedor na execução condominial. Seria oportuno que o texto legal explicitasse que o promitente vendedor responde pela dívida condominial, mas apenas nos limites dos direitos reais sobre o imóvel, e não com todo o seu patrimônio, conforme exposto anteriormente.
Nesse contexto, a revisão do Tema 886 representa uma oportunidade relevante para consolidar o entendimento de que a obrigação pelo pagamento do débito condominial recai sobre o comprador que detém a posse do imóvel, enquanto ao promitente vendedor cabe uma responsabilidade concorrente, porém restrita. Essa responsabilidade do promitente vendedor não abrange todo o seu patrimônio, limitando-se aos direitos reais que possui sobre o imóvel, os quais podem ser objeto de penhora e expropriação para garantir a satisfação do crédito condominial.
Dessa forma, busca-se um equilíbrio entre a efetividade da cobrança condominial e a proteção dos direitos de cada parte, promovendo Justiça e segurança jurídica no âmbito dos condomínios edilícios.
1 Compromisso de Compra e Venda. Ed. Malheiros.
2 Recurso Especial nº 1.345.331/RS, de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão.
3 Art. 1.334. Além das cláusulas referidas no art. 1.332 e das que os interessados houverem por bem estipular, a convenção determinará: I – a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições dos condôminos para atender às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio; ……………. § 2º. São equiparados aos proprietários, para os fins deste artigo, salvo disposição em contrário, os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas.
4 Art. 1.345. O adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios.
5 Recurso Especial nº 2015740 – SP (2022/0227934-3)
6 José Osório, pg. 18.
7 Neste sentido, a Lei nº 11.977/2009 que criou o Programa Minha Casa, Minha Vida, estabelece em seu art. 72 a obrigatoriedade da notificação ao titular do domínio, pleno ou útil (inclusive o promitente vendedor ou fiduciário), das execuções de cotas de condomínio, de imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana ou de outras obrigações vinculadas ou decorrentes da posse do imóvel urbano, nas quais o responsável pelo pagamento seja o possuidor investido nos respectivos direitos aquisitivos, assim como o usufrutuário ou outros titulares de direito real de uso, posse ou fruição. Com isso, a lei reforça o entendimento de que os titulares do domínio sobre o imóvel não são os responsáveis pelo pagamento dos encargos condominiais, mas devem ter ciência da sua execução, como forma de preservar seus direitos sobre o imóvel.
8 AgInt no REsp n. 2.006.920/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe de 29/3/2023.
No mesmo sentido: “A jurisprudência do STJ é no sentido de que a obrigação condominial estávinculada à própria coisa, de modo que o próprio imóvel gerador das despesas constitui garantia de pagamento da dívida. Desse modo, nada impede que se penhore o imóvel do proprietário atual na fase de cumprimento de sentença, mesmo não tendo participado do feito na fase de conhecimento” (AgInt no Aresp n. 2.142.462/SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 24/4/2023, DJe de 27/4/2023).
9 “Art. 1.345. O adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios, observado o disposto no art. 502 deste Código, em caso de alienação onerosa. § 1° Consideram-se adquirentes, para os fins de aplicação deste artigo, o devedor fiduciante e o arrendatário, nos casos de alienação fiduciária de bens imóveis e de arrendamento mercantil. § 2° O comprador, promitente comprador ou cessionário, portadores de títulos que não estejam registrados no Registro de Imóveis, serão os únicos responsáveis pelo pagamento das cotas condominiais, se ficar comprovado que se imitiram na posse do bem ou que o condomínio teve ciência inequívoca dos negócios jurídicos celebrados, como, por exemplo, pela comunicação a que alude o inciso VIII do art. 1.336, deste Código.”
Fonte: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/442355/stj-reabre-o-debate-sobre-o-pagamento-de-despesas-condominiais